quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Entrevista: Canek Guevara

 É natural enxergar sempre a figura de Che como um jovem, um Peter Pan do comunismo, talvez por isso tenha sido a inspiração e a imagem de tantos movimentos estudantis, mas o fato é que ja fazem mais de quatro décadas desde sua morte e hoje o revolucionário com sobrenome Guevara é seu neto Canek Sanches Guevara.


 "Você se define como um cronista itinerante, por quê? E ideologicamente, como se define? Quem são os teóricos e revolucionários que te inspiram?
 
 Quando criança eu adorava os livros e filmes de aventura, e especiais como westerns, urbanas, ou na África. Quando adolescente, continuei com esse belo vício e, inevitavelmente, um dia comecei a ler outras coisas além de romances. Não exagero se digo que a primeira crônica de viagem que lembro de ter lido foi a do ainda jovem Ernesto Guevara, aquela em que ele relata seu périplo por terras sul-americanas. Logo comecei a ler muitos cronistas de diversas culturas e com diferentes obsessões, todos eram também de diferentes épocas, e minha fascinação aumentou. Sendo adolescente, comecei a trabalhar num jornal – era aprendiz de fotógrafo – e sonhava em ser correspondente de guerra, coisa que nunca pude fazer. Então, não sei por que, comecei a viajar e a escrever até que essa paixão se tornou profissão, e eventualmente, trabalho assalariado.
Por outro lado, suponho que em termos ideológicos me sinto mais próximos aos anarquismos – as diferenças entre as distintas tendências libertárias às vezes são abismais – que a qualquer outro “ismo”, mas tampouco militei em organização alguma, talvez por que sou muito desorganizado para isso. Ou talvez muito egoísta. Em todo caso, todo pensamento anarquista, o clássico e o contemporâneo, me serve de alento. Também parte do pensamento liberal me parece de suma importância; talvez eu tenha aprendido com o tempo a não dar muita bola para as conclusões ou teses de um pensador, e a me concentrar mais em suas perguntas, que na verdade é o que importa. Assim, desfruto igualmente da leitura de Bakunin e de Cioran, ou de Che e Žižek, de Marx e de Voltaire, de Nietzsche e de Hakim Bey, de Lênin e de Marcos, e isso não é por que estou de acordo com eles, mas por que com todos eles construo meu desacordo com o mundo.


 O regime cubano, em suas palavras, é “um vulgar capitalismo de estado também chamado de ‘Fidelismo’”. Esse regime ruirá quando Fidel morrer e tentarem embalsamar mais este “ismo”? 

 Na verdade, nos tempos que correm, o capitalismo de Estado está se reforçando em Cuba. As demissões massivas de funcionários públicos, o desaparecimento precoce dos alimentos subvencionados, a discussão em torno do pagamento da educação e da saúde, e a “criação” de empregos liberais que a população pode realizar “a margem” do Estado – ainda que pagando impostos altíssimos – dá conta de um processo de distanciamento do socialismo estatal para entrar num capitalismo sob um controle absoluto do Estado. Ou seja, o “avanço” no capitalismo de Estado cubano de agora consiste em o Estado socialista adotar medidas neoliberais para preservar o socialismo e a revolução.
Porém, você tem razão, sem dúvida Fidel será embalsamado, ainda que seja metaforicamente, e será utilizado como bandeira por seus herdeiros a fim de justificar o que fizerem dali para frente. É inevitável, não há outra coisa para se agarrar.

 A Revolução Cubana teve seu amparo em coletivos e indivíduos anarquistas, sindicatos e movimentos de trabalhadores, que sustentaram como podiam suas posições no coração da ditadura de Fulgencio Batista. Enquanto isso, o processo revolucionário insurrecional tomava corpo na Sierra Maestra. Ainda que nesses moldes, você acredita que esta não foi uma revolução democrática?

 Não confundamos as coisas: a revolução foi profundamente democrática; a ditadura que emanou dela que não. A revolução foi democrática por várias razões: primeiro, por que sua aspiração original não era “avançar” rumo ao socialismo, mas “retroceder” a uma democracia anterior ao golpe de Estado de Fulgencio Batista. Esta aspiração uniu, efetivamente, grupos de diversas tendências – desde anarquistas até fascistas revolucionários – numa luta comum contra um inimigo comum. Até o Movimento 26 de Julho era uma amalgama de personagens sem uma ideologia única, e sem dúvida isso garantiu seu êxito em termos de penetração na sociedade: naqueles anos anteriores ao triunfo, o discurso do M-26-J era mais próximo ao nacional-populismo latino-americano – Perón, Cárdenas – que ao marxismo ou ao leninismo. Entretanto, em 1959, Fidel insistia que a revolução não era comunista e que não havia sequer um comunista em seu governo. Se declarava nacionalista e democrata.
Então, pouco a pouco, a aliança entre Fidel e o Partido Socialista Popular – estalisnista – se encarregou de fechar as portas a todos os demais grupos: já em 1960, 1961, as discussões entre socialistas, comunistas (trotskistas, estalinistas), liberais, libertários, anarcosindicalistas, democratas, nacionalistas, etc e etc e etc., eram ferozes e muitos deles acabaram nas prisões, no paredão ou no exílio. Alguns continuaram a luta armada contra o novo governo revolucionário que, segundo eles, havia traído o espírito democrático da revolução. A história oficial cubana os conhece como “bandidos”.

 Após tantas críticas ao regime cubano, chamado por você de “Fidelismo”, como é seu trânsito em Cuba? Pode ir até a ilha sem problemas ou há restrições e riscos? 

 Não tenho ideia. A verdade é que nunca tentei voltar a Cuba, mas gosto da ideia. Sei de amigos que voltaram sem problema algum, de outros que não podem nem aproximar-se da embaixada e de outros mais que até voltam a Cuba, mas estão sempre sob vigilância policial. Em todo caso, sempre haverá restrições e riscos pura e simplesmente por que é Cuba.

 Acredita em alguma mudança em Cuba através de Raúl, mesmo com este “Fidelismo” sobrevivendo na pessoa de Castro? 

 Raúl já está promovendo mudanças, algumas bastante profundas, mas também é certo que há uma leva de condições psicológicas no subconsciente cubano: a Mudança – com maiúscula – está indissoluvelmente ligada à morte do comandante, talvez por que há décadas o poço adquiriu a certeza que Fidel jamais abandonará o poder, ao menos não por vontade própria. É claro que em termos oficiais o presidente é Raúl, mas todos sabemos – ou intuímos, e nesse caso é a mesma coisa – que Fidel continua a frente, opinando sobre isso e aquilo, e ditando ordens a torto e direito.
Ou talvez não, talvez, na verdade, se converteu nesse velhinho simpático que aparece nas fotos publicizando roupas de Adidas e admitindo erros que todos sabemos que cometeu.

 A crise de 1989 acabou apenas com a economia cubana ou fez definhar também uma porção importante da utopia do regime?

 A crise de 89 foi brutal em muitos aspectos. Por um lado, claro, há a crise como fenômeno econômico, o que é uma atroz redundância para um país em eterna crise econômica; e também, como bem pontuou, a crise ética, moral, ideológica, política, tanto na sociedade como em “seu” governo. Tentarei explicar: a educação cubana, ainda que científica, técnica e humanista, no fundo não é de todo laica no sentido de que existe todo um “santoral” revolucionário que desde sempre é intocável, assim como as verdades absolutas do dogma, que eram inquestionáveis. Assim, nos ensinaram que o socialismo sobreviveria ao capitalismo, que um dia o globo inteiro seria comunista e que seria, por fim, um mundo sem contradições, sem exploradores nem explorados e bla bla bla. E de repente, certo dia, o bloco que cai é o soviético, não o capitalista, e o fez com tamanho estrondo que ficamos todos surdos e desconcertados.
A crise então se alastrou; compreendemos que, em Cuba, havíamos trocado a dependência econômica vinda dos Estados Unidos pela dependência da URSS. Não havia indústria cubana – grande indústria, quero dizer – pois tudo vinha dos chamados países amigos; a subordinação econômica e industrial era tamanha, e a falta de infraestruturas modernas em Cuba era tão aguda, que em alguns anos o país se viu sem nada. E os valores – aqueles que não têm relação com dinheiro – foram à merda também: as ruas de La Havana se tornaram um território violento no qual poderiam te matar por conta de um dólar, coisas até então inéditas. A prostituição se transformou em um negócio aceito, tolerado em prol da obtenção de moeda estrangeira, e então, o que todos lembramos, veio a crise dos balseiros e a pequena, porém sonora, revolta que aconteceu em La Havana em 1994, ano do apogeu do chamado Período Especial em tempos de paz.
Que fique claro, aquela foi uma crise total.

 Como você vê o anarquismo hoje? Acredita que haja esperança de ressurgir como uma real opção na esquerda?

 Não me agrada a palavra esperança, por que sempre me lembra a espera, também não estou certo de que o anarquismo seja uma real opção. O anarquismo parece mais ligado ao caminho que ao fim; inclusive entre os anarquistas é difícil saber com precisão como seria uma sociedade por inteiro anarquista. Desde os primitivistas, que renegam toda forma de “progresso” ou “desenvolvimento” até os anarcocapitalistas que concebem uma sociedade sem Estado nem corporações, mediada apenas pela atividade de pequenos proprietários livres, há um abismo impressionante. Assim, é difícil imaginar o anarquismo como um fim real.
E isso me fascina, por que desprezo as sociedades planejadas no papel, detesto as idéias pré-concebidas e absolutas, e por isso tendo a pensar que o anarquismo não é tanto um fim em si mesmo, mas um interminável caminho em constante construção. No fundo, me parece que se algum dia uma sociedade anarquista se concretizasse, também ela estaria em constante construção, e nossas idéias sobre ela sempre mudam de uma época para outra. O que hoje chamamos liberdade talvez amanhã seja visto como um simples simulacro, ou um desvio, ou talvez algo mais terrível ainda. E o que hoje chamamos liberdade, por mais ridículo e limitado que este conceito nos pareça, há 150 anos era somente um sonho característico de absurdos idealistas desfigurados.

 Como você analisa e valora algumas das rebeliões ideológicas e sociais das últimas décadas, como a revolta de Oaxaca, os protestos da Ação Global dos Povos, as ações na Grécia e especialmente a insurreição do EZLN (Exército Zapatista de Liberação Nacional)?

 Todas são diferentes, diferentes reações a um cúmulo de situações mais ou menos comuns que, a princípio, as dota de certa unidade. Uma coisa que, sem dúvidas, atrai minha atenção para os movimentos recentes – os que mencionou e muitos outros – é a imperiosa necessidade de grupos distintos, coletivos e povos de integrar-se aos mercados nacionais e globais. Ou seja, mais que revoltas contra o capital, elas me parecem mais lutas para inserir-se plenamente neste mercado, ainda que preservando suas culturas, tradições, mercadorias e métodos de trabalho. Os campesinos lutam para competir com os grandes supermercados e a agricultura industrial; nas cidades a luta é por espaços políticos ou ideológicos pertencentes a uma única classe social – a dos políticos -; e em termos mundiais, o objetivo parece ser subir na onda da globalização e aproveitar sua força para exportar outros produtos, tanto materiais como ideológicos, o chamado “mercado justo”, por exemplo.
Não desprezo estas lutas, é de suma importância o constante questionar do sistema ainda que não seja para destruir-lo, mas para torná-lo “mais amigável”, como dizem os anúncios de computadores. Não acredito que destes movimentos nasça – assim, em termos absolutos – a Solução, mas sem dúvida eles conhecem e expõem os problemas do mundo moderno. Denunciam-nos com suas próprias palavras e ações, e ainda que por fim os movimentos se esgotem no mero ato de “resistir” – isso que chamam de Resistência – ou que se afoguem em suas contradições, corrupções e disputas internas – como aconteceu em Oaxaca -, ou se ilhem da sociedade ao invés de avançar e transformá-la – os zapatistas com suas “comunidades autônomas” -, ou que a repressão os destroce – o caso da Grécia – ainda assim, insisto, “alguma coisa” eles fizeram: nos fizeram lembrar que a luta sempre continua, que é imparável tal e qual a exploração – ainda que mude de formas e modos – também o é.

 Você disse, em entrevista ao El Nacional, que o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, é um guerrilheiro em tempos de paz, que utiliza as instituições democráticas para atacar a própria democracia. Por outro lado, Chávez se coloca como uma opção ao totalitarismo econômico dos Estados Unidos e Europa. Estamos entre a cruz e a espada?

 Me parece que essa é uma falsa dicotomia, e por isso não acredito que estamos entre a cruz e a espada – ao menos eu não estou. Se alguém me propusesse o mundo em termos de “ou estás com Chávez ou estás com Bush”, o mandaria pro inferno imediatamente, por que na verdade não sou partidário nem de um, nem de outro. Mas acontece que o animal humano tem esta insaciável necessidade de lideranças, de líderes, de comandantes, de caudilhos, e procura sempre alguém para se abrigar. Alguém que reconforte seu espírito e ideologia, e quando encontra, se torna incondicionalmente dele, ainda que as custas de fazer o ridículo defendendo o indefensável.
A respeito de Chávez, duas coisas me surpreenderam quando estive na Europa: a primeira, que muitos jovens franceses e espanhóis que defendem Chávez “por tudo”, não aceitam em seus países gestos e explosões como as que Chávez costuma prescrever a seus subordinados. E a outra coisa que me surpreendeu é o fato dos auto-determinados “fascistas revolucionários” europeus adorarem Chávez – e também Fidel, claro – e a única coisa que neles reprovam são “alguns pequenos caprichos comunistas que ambos têm”
Em resumo: não, não estou entre a cruz e a espada, prefiro o meu lado. Talvez um pouco mais a esquerda, para que ambos não me esmaguem. Por último, ainda que não menos importante, isso que chamamos – ou chamam, para ser correto – socialismo do século XXI, na verdade se parece muito a um certo capitalismo da primeira metade do século XX: nacionalista, corporativista e populista. Por acaso isso é o socialismo?

 O que Cuba e os cubanos podem fazer para evitar que, após a morte de Fidel, se substitua uma ditadura política por uma ditadura do capital? 

 Intuo que, na verdade, o futuro imediato de Cuba passará pela ditadura política e também pela ditadura do capital. A Ásia está mostrando o caminho – não apenas China, também Vietnã, por exemplo – e a combinação parece ser muito benéfica para os poderosos. Imagine o cenário: férreo controle político, sem direito a greve ou a manifestações, e por sua vez, o grande capitalismo atuando pelos flancos, em franca cumplicidade com o governo que se pretende algo como social-comunista.
Por mais paradoxal que pareça, a única maneira de suavizar – não sei se deter – o avanço do grande capital é liberando em Cuba os pequenos negócios, o pequeno comércio, a pequena empresa, e liberar também os sindicatos e demais organizações sociais do controle do Estado. Apenas um certo “liberalismo socialista”, econômico e político, poderia adiar o assalto capitalista. Mas não estou certo de que o governo aposte nisso.

  Como você percebe esta atual crise econômica, que teve seu auge há pouco mas ainda segue forte varrendo a Europa? E, para complementar, acredita que a estratégia de embate utilizada pela CGT (Central Geral dos Trabalhadores) e demais centrais sindicais da França, Grécia, Espanha e outros países foi correta, conclamando inclusive a greve geral?


 Me parece que a crise de credibilidade das instituições políticas não se limita aos partidos, mas também, de forma inevitável, aos sindicatos. O sindicato nasceu com a revolução industrial e se consolidou com o fordismo, porém, ainda que os modos de produção contemporâneos não sejam fordistas, o sindicato, de uma ou outra maneira, conseguiu ficar ancorado na primeira metade do século XX. A empresa moderna é uma organização transnacional, com trabalhadores por todo o mundo – pense no Mcdonalds, por exemplo -, enquanto o sindicato continua atracado no nacionalismo. Como combater fenômenos globais sem uma organização que também seja global? Mas o sindicato moderno esqueceu o velho acerto marxista segundo o qual não há trabalhadores cubanos ou franceses, mas apenas trabalhadores. O sindicato, assim como boa parte da “esquerda moderna” se esqueceu por inteiro desta enorme pulsão globalizante que foi desde o princípio a espinha dorsal dos movimentos anarquista, socialista e comunista, e todos, insisto, todos parecem convertidos em nacionalistas e extrema direita: agora falam da Pátria e de “nossos” trabalhadores, antes falavam da revolução mundial, dos trabalhadores do mundo inteiro.

 Chegou a acompanhar alguma notícia sobre a política brasileira? O presidente Lula deixou o mandato com índice histórico de popularidade, e além de conseguir eleger uma sucessora, se postou como forte liderança internacional. Você vê isso com bons olhos?

 De certo modo – perdão pelo excesso – Lula me lembra Lênin. Ou seja, suas lutas com certeza têm sido diferentes, mas têm algo em comum: ao conquistar o poder, ambos estavam seguros que antes de fazer qualquer coisa, teriam que desenvolvem o capitalismo. Lênin tentou isso no nascente da URSS – sua morte encerrou este processo, Stalin tinha outras idéias a respeito – e, de certa forma, Lula tentou isso no Brasil: impossibilitado de “construir” o socialismo, compreendeu que não havia outra forma senão avançar no desenvolvimento deste mesmo capitalismo, que talvez hoje seja uma prisão, mas que, da mesma forma, amanhã talvez seja a base para construir algo mais.
Claro que como anarquista, minhas simpatias não estão com Lula, mas como cidadão comum e corrente tampouco sinto antipatia. Sem dúvida foi muito inteligente sorteando alguns “pequenos problemas” durante seu governo; sem dúvidas bateu de frente com outros movimentos e organizações que se sentiram traídas quando o PT assumiu o poder. Sem dúvida foi implacável com seus inimigos políticos e sem dúvidas deixou de lado muito do romântico idealismo de outrora; mas eu não sou um romântico idealista, mas um materialista dialético, e entendo bem a diferença entre o desejável e o possível. Nesse sentido, acredito que Lula fez aquilo que poderia fazer, nem mais nem menos. Isso é suficiente para meus sonhos e ideiais? Não, mas sempre pode ser pior.

 O que conhece de idéias, movimentos sociais e sindicatos brasileiros que podem ser uma esperança de mudança? Acredita que MST seja um desses bolsões?
 
Como havia dito antes, não acredito que a solução esteja numa organização em particular, mas sei que todas as lutas, ainda que pequenas e imediatas, são importantes. O MST, claro, não é um movimento pequeno, nem representa um problema menor, e mesmo que não tenha inventado nada novo – pois, a rigor, suas táticas e estratégias, assim como sua comunicação, são parecidos com todos os movimentos agrários da América Latina -, a magnitude de suas manifestações foram tais que seu grito foi ouvido no mundo todo.
Bem, mas voltando a “esperança de mudança”: existe, acredito, um grande problema ainda sem solução, e não é outro além dos métodos de luta, o mesmo para os sindicatos, organizações agrárias ou a euforia estudantil. Seguimos parados em métodos de luta de outrora: as manifestações, o bloqueio de estradas, a “invasão” de edifícios públicos, inclusive a greve de fome; isso tudo acontecendo enquanto o certo é que vivemos num mundo que já sente pouquíssima simpatia por estes atos, não por desprezo às idéias que estão por trás deles, mas por que uma manifestação ou um bloqueio de ruas não afetam quase nada aos poderosos do mundo, mas afetam os simples trabalhadores, os possíveis aliados dessa luta. Claro que não sei como poderiam ser substituídos os habituais modelos de protesto, mas parece bastante óbvio que é preciso encontrar alternativas em prol de garantir o êxito – que não é o mesmo que o poder – de um movimento dado, de uma demanda específica.
É um assunto difícil, talvez por que continuamos pensando No Caminho ao invés de concentrarmo-nos em pequenas mudanças concretas. Ou seja, se o argumento fundamental da democracia é o tão alardeado “império da lei”, então me parece que uma necessidade imediata é lutar por leis que nos beneficiem, a cada indivíduo ou coletivo segundo suas necessidades, agora parafraseando. A revolução talvez seja bela, mas não pode ser constante nem permanente – é uma impossibilidade que vai além da mera semântica -, mas a evolução de uma sociedade pode ser contínua, ainda que nem sempre no ritmo desejado.


 Agora, falando um pouco da relação com seu avô e a memória dele. Quem é Che Guevara para você: seu avô ou o grande herói da Revolução Cubana?

Suponho que é um pouco ambas as coisas, e também nenhuma. Ou seja, eu não o conheci, portanto é difícil para mim referir-me a ele como “meu avô”, com essa familiaridade que apenas o contato direto proporciona. Por outro lado, não sei se Che é o maior herói da revolução cubana, mas certamente é o da falida revolução latino americana, daquela na qual que se transformou em ícone.
Muitas coisas me atraem de Che Guevara: suas grandes contradições – um espírito anárquico comungado com o estatismo centralizado, um intelectual guerrilheiro, um aventureiro ilustrado, um ministro que odiava o escritório. Não era, claro, um homem monotemático; quando se analisam seus ensaios, cartas e discursos, nas entrelinhas se lê uma fascinação pelo mundo e pelos saberes, ainda que muitas vezes os dominava com desordem. Talvez, no fundo, admiro em Che duas coisas acima de tudo: a primeira, que foi um homem capaz de lançar-se à luta – matar, enfrentar a morte – por um país que não era seu – outra vez, o contrário aos patéticos nacionalistas modernos -, e a outra que, tendo triunfado e escalado até os altos estratos do poder cubano, abandonou tudo – a comodidade, benefícios, sinecuras e responsabilidades – para lançar-se outra vez na luta, de novo num país que tampouco era o seu. Na há, obviamente, muita gente assim no mundo.

 Seu avô era marxista e é talvez o revolucionário mais emblemático da história, como isso se reflete em você?

 Francamente, é difícil saber. Cresci no meio da esquerda radical em que o Che, por si só, era um personagem de suma importância, a margem da “familiaridade” que tínhamos com ele. Como qualquer outra família de esquerda na América Latina dos anos 70, Che era fundamental na minha, figura básica do revolucionarismo, do aventurismo e do guerrilherismo da época. Por outro lado, com o passar dos anos, algo do marxismo se impregnou em mim. Isto é interessante, pois, por ter estudado um Marx simplificado em Cuba, apto para as consignas da massa, redescobrir-lo quando adulto foi fascinante, tanto que mais que marxista, cheguei a me considerar marxiano. Explico: o termo marxista, hoje, parece aludir mais aos intérpretes de Marx que ao próprio Karl, que é, na verdade, quem me fascina. Dizem que em uma das últimas entrevistas que concedeu, assegurou: “tudo que sei é que não sou marxista”, pretendendo separar-se da ortodoxia e do dogmatismo que suas idéias despertavam em certos setores da intelectualidade revolucionária. Em termos intelectuais, Marx é tão fascinante como Guevara é em termos vivenciais – insisto, sua vida é “anormal”. Assim suponho que me nutri de ambos, pela cultura herdada e pelo gosto adquirido. O resto, penso, é apenas anedótico.


 Assisti um vídeo da Casa Amèrica Catalunya em que você afirma que seu avô, Che Guevara, é um mito pop convertido num bem de consumo, numa mercadoria, e que esse é, provavelmente, o destino de todo revolucionário. Poderia explicar como se dá esse processo e o que você consegue sacar do homem e do militante Ernesto Guevara lá no fundo de todo esse endeusamento ideológico e desta lógica de mercado? 

 Em rigor, foram os comunistas – os subversivos, os revolucionários -, que converteram Che em um ícone, em um mártir, em um símbolo. Foram eles os encarregados de converter seu rosto num pôster, numa camiseta e, claro, numa bandeira. Assim se converteu em marca comercial, porém, insisto, foi a própria esquerda a encarregada em converter Che num santo impresso, estampa da religiosidade revolucionária.
Mas é claro que o capitalismo também o converteu em mercadoria, e na verdade esse é um processo lógico. O capitalismo sempre absorveu toda dissidência e a regurgitou em forma de mercadoria, de bem de consumo, que é a única forma que o capital conhece para “apropriar-se” de qualquer coisa. É a única forma que conhece de proceder e, além do mais, é seu único mecanismo de sobrevivência: reciclar as idéias subversivas em tantos bens culturais – livros ou filmes de Che, discos de punk anarquista, revistas de contracultura aceitadas como um todo, com código de barras e vendas em supermercados. Assim, começa a existir quatro Ches: o Che marca, o Che mito, o Che santo e o Che real, que deve ser o verdadeiro desconhecido dessa história. Entre todos eles se constrói a ausência – ou a eterna presença – do Che das T-shirts.

 Além da genética, o que Canek leva de Che? 
 
Não sei; as vezes não é evidente a fronteira entre a genética e a cultura, entre a herança e a aprendizagem. Em todo caso, Che é de suma importância na minha vida e no meu pensamento, ainda que nem sempre por coincidência. Como disse antes, cresci num entorno guevarista e revolucionário, e isso, sem dúvidas, me marcou. A proximidade então, não é sempre familiar. Talvez compartilhamos algo em nosso humor, inclusive no humor negro. Também levo uma barba desordenada, mas isso é por que odeio afeitar-me. Por outro lado, detesto sua poesia…

 Você acredita que a revolução é um processo e estamos inseridos nele, ou uma mudança política é uma utopia ainda maior hoje? 

A revolução é um grande mistério. Dedicamos os últimos séculos a exaltar um acontecimento caótico, explosivo, imprescindível. Primeiro, as revoluções estalam por “qualquer coisa”, ou seja, sem importar os desejos das vanguardas, nem as predições dos ideólogos; em segundo lugar, conduzem a “qualquer lugar”, nem sempre com o benefícios dos interessados. Entenda-me, não sou um contra-revolucionário – e me acusaram muitas vezes de ser -, acontece que parece muito pouco prudente depositar todas as esperanças em tão volátil acontecimento. No fundo, esperar que a revolução “resolva tudo” me parece tão ingênuo quanto esperar que os problemas se resolvam sozinhos. As revoluções são necessárias, às vezes incontroláveis, sempre inevitáveis: quando estalam nada as detém; podem ser derrotadas, claro, mas já nada pode ocultar o fato de que ali “aconteceu” uma revolução.
Entretanto, o que me parece realmente excedente hoje em dia é o romantismo revolucionário. Olhar os processos de frente, afundar-se em suas luzes e obscuridades, em suas grandezas e mesquinharias, em seus lauréis e crimes, isso me parece de suma importância na hora de analisar qualquer revolução. Mas, sobretudo, livrar-se da fantasia – da falácia – fundamental emanada das revoluções do século XX: aquelas do ditador benévolo, contradição política onde estiver. Se há uma figura que ainda limita nosso pensamento, essa sem dúvida é a do líder carismático e mão de ferro, protetor e castigador, que beneficia o povo ao reprimir-lo; e eu, sendo franco, não quero nem necessito de um desses."

Referências

http://www.negodito.com/uma-trilha-para-canek-guevara/ . Acessado 31/10/2012

sábado, 27 de outubro de 2012

O que é Anarquismo?

 O significado de anarquismo é "sem governo", mas porque sem governo se com ele é ruim, sem ele não é pior? a cidade não vai virar uma zona de guerra? as pessoas vão fazer tudo que der vontade? Essas são varias das perguntas sobre o anarquismo que pretendo responder e tentar provocar alguma curiosidade para que você abra um livro anarquista.

Micro-Genealogia do Estado e da dominação

 O Estado (País, Reino, Nação ou Império) não nasceu de um acordo de pessoas ou uma união de cidades. Antes de o Estado existir havia tribos nômades que aprendendo as técnicas de pastoreio e agricultura se tornaram sedentárias. A disputa por território, recursos ou por sexo criou disputa de tribos ou clãs, que eram famílias governadas pelos mais velhos, e assim as guerras. Percebendo que era mais proveitoso governar outra tribo do que saquear ou queimar, passou-se a criar os impostos, que nada mais eram -será que ainda não continuam sendo? - como "saques regulares", os impostos e também a propriedade privada porque mesmo a propriedade existindo antes do Estado, era uma propriedade "de ocupação" "de uso coletivo da tribo", depois da implantação do Estado passou-se a formalizar a propriedade, o monopólio da terra gerou as elites que governavam o Estado e dominavam as classes mais baixas, por isso a propriedade privada e o estado estão intimamente ligados.
 Até a ascensão do capitalismo, o sistema de produção era feudal, o dono das terras tinham o domínio sobre os camponeses que moravam lá, que deveriam trabalhar para ele e não poderiam deixar o feudo, essa elite agrária partilhava entre si o poder político com a justificativa de que eram os protetores do povo. Nessa época fica claro o poder do padre e a da igreja, não que antes a religião não tivesse tido poder mas no sistema feudal fica mais claro, a Igreja dava legitimidade ao domínio da aristocracia - até porque os cargos altos da Igreja eram ocupados por membros da nobreza - dizendo que haviam três classes, os que oravam (padres, freiras etc.), os que produziam (camponeses) e os que guerreavam e governavam (nobreza), e esse sistema foi criado por um tal deus de Israel, até ai pode-se concluir que existiam três opressores inter-relacionados o Estado, os proprietários de terra e a Igreja.
 Com o liberalismo e as revoluções burguesas, o direito exclusivo da nobreza de ter terras foi destruído, os banqueiros e os novos donos das terras e das ferramentas, os "meios de produção", subiram ao poder, ainda com apoio da Igreja, a democracia no início era limitada aos alfabetizados e com certa renda ou seja os proprietários e sua família. Depois de lutas populares e não por boa vontade dos governantes, as mulheres, os trabalhadores e os negros conseguiram o sufrágio universal, voto para todos, porém uma nova forma de domínio se originou, a grande mídia,que passou a controlar as eleições e a opinião pública ou melhor a opinião publicada.

A Utopia

 Mas sem os governantes não ficaria um pouco desorganizado? Esse é o ponto, anarquia não é desordem pura e simples, é liberdade, existiria organizações horizontais (sem hierarquia) para servir de fóruns e comitês livres, certo? Esses organismos já existem ou já existiram, a comuna, o sindicato e a federação de trabalhadores, a comuna seria como um munícipio livre onde os camponeses se reuniriam para resolver seu problemas por democracia direta. O sindicato seria bem diferente do sindicato de hoje que só serve para legitimar a exploração, agindo sempre a favor do patrão, seria a reunião dos trabalhadores de certa classe para planejar a produção e a distribuição de produtos, esse sindicato se reuniria com outros e criaria uma Federação de Trabalhadores da cidade que se uniria a outras formando as Federações Estaduais ou Provinciais e seguiria até chegar a um nível global.

Democracia Direta, Senso Majoritário e Controle Econômico da Política


Mas essa tal de Federação de Trabalhadores não vai ser a mesma coisa de que o Estado é hoje? Não, o Estado que se declara ser uma República democrática mas sempre, mesmo quando se pode ter uma democracia direta, recorre a democracia indireta, o velho método de conceder seu poder a terceiros e achar que eles farão algo por você, o Estado sempre aliena o povo e o rebanho agradece, a participação política tem que existir quando não for possível deve haver democracia mista com plebiscito para todas as questões importantes, outro ponto é a ditadura da maioria, é certo que a maioria não deve ficar de braços cruzados vendo uma minoria abastada explorá-la, mas quando a maioria arrogante com seus dógmas e preconceitos interfere na vida privada da minoria, como proibir o casamento gay ou que brancos(as) se casassem com negros(as) a atual democracia legitima. Além de todos os problemas anteriores existe o controle econômico da política, quem tem poder econômico sempre mandou, é impossível uma campanha eleitoral justa entre um partido com meio minuto de tv e outro com campanha milionária, 30 minutos de horário eleitoral, bandeiras, santinho, alianças políticas e toda essa porra de carro de som, afinal uma mentira repetida mil vezes se torna verdade.

A Natureza Humana

É natural refutar as utopias dizendo que a guerra, a destruição e o "mal", é a natureza humana, então quanto menos liberdade melhor, o sujeito é caótico, já o governo é pacífico, justo, moderado, em qualquer lugar precisa haver um poder superior, regulador. Porém não existe natureza e sim condição humana, depende da ideologia que se tem e da sociedade onde se vive. Um estudo psicológico feito por Wilhelm Reich pode desfazer estes preconceitos colocados em nossas cabeças desde que nascemos.

 “Se a sexualidade agressiva consiste em uma satisfação negada, a necessidade de satisfazê-la a despeito da negação continua a se fazer sentir. De fato, surge o impulso de experimentar o prazer desejado a qualquer preço. A necessidade de agressão começa a suprimir a necessidade de amar. Se o objetivo do prazer é completamente eliminado, tornado inconscientemente impregnado de angústia, então a agressão, que originalmente era apenas um meio, se torna – em si mesma – uma ação relaxadora da tensão. Torna-se agradável como uma expressão de vida, dando assim origem ao sadismo”

 O que Reich diz ? Primeiro precisamos admitir que a sexualidade, segundo a obra do psicanalista, seria a raiz do comportamento humano, que o Orgônio seria a energia da vida que se manifestaria de diversas formas, criando nosso modo de agir, nosso caráter. Então tanto as normas que formatam a sexualidade dos indivíduos, como as outras regras e hierarquias da vida cotidiana que acabam criando neuroses seriam barreiras, impedimentos, e a psicologia considera que uma Vontade que sofre um Bloqueio se torna Raiva, então a vontade de prazer se torna fúria, O Estado em sua forma mais ampla incluindo a Igreja e o Capital, impende os desejos das pessoas seja pela lei, pela moral ou pela miséria cria o instinto violento, a base da maioria dos crimes e também a guerra. 

"A tirania da Lei não é abrandada por sua origem majoritária" Henry David Thoreau

"O melhor governo é aquele que menos governa" Henry David Thoreau

Referências

Thoreau,Henry David. Desobediência Civil. 1848

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

SUMÁRIO

                                                                "...desta vez, no entanto, eu venho
                                                                      como o vitorioso Dionísio, que
                                                              transformará o mundo
                                                       numa festa... Não que eu tenha
                                                                  muito tempo..."
                                                                Nietzsche
                                                      (em sua última carta "insana" a Cosima Wagner)


Capítulo l
Utopias Piratas

Capítulo 2
Esperando pela Revolução

Capítulo 3
Psicotopologia da Vida Cotidiana

Capítulo 4
A Internet e a Web

Capítulo 5
"Fomos para Croatã"

Capítulo 6
A Música como um Príncipio Organizacional

Capítulo 7
A Ânsia de Poder como Desaparecimento

Capítulo 8
Caminhos de Rato na Babilônia da Informação

Apêndice A
Caos Linguístico

Apêndice B
Hedonismo Aplicado

Apêndice C
Citações Extras

Declaração Pirata, por Capitão Bellamy

O Jantar

CAPÍTULO 1 : Utopias Piratas

 Os piratas e corsários do século XVIII montaram uma "rede de informações" que se estendia sobre o globo. Mesmo sendo primitiva e voltada basicamente para negócios cruéis, a rede funcionava de forma admirável. Era formada por ilhas, esconderijos remotos onde os navios podiam ser abastecidos com água e comida, e os resultados das pilhagens eram trocados por artigos de luxo e de necessidade. Algumas dessas ilhas hospedavam "comunidades intencionais", mini-sociedades que
conscientemente viviam fora da lei e estavam determinadas a continuar assim, ainda que por uma temporada curta, mas alegre.
 Há alguns anos, vasculhei uma grande quantidade de fontes secundárias sobre pirataria esperando encontrar algum estudo sobre esses enclaves - mas parecia que nenhum historiador ainda os havia considerado merecedores de análise. (William Burroughs mencionou o assunto, assim como o anarquista britânico Larry Law - mas nenhuma pesquisa sistemática foi levada adiante.) Fui então em busca das fontes primárias e construí minha própria teoria, da qual discutiremos alguns aspectos neste ensaio. Eu chamei esses assentamentos de Utopias Piratas1.
 Recentemente, Bruce Sterling, um dos principais expoentes da ficção cientifica cyberpunk, publicou um romance ambientado num futuro próximo e tendo como base o pressuposto de que a decadência dos sistemas políticos vai gerar uma proliferação de experiências comunitárias descentralizadas: corporações gigantescas mantidas por seus funcionários, enclaves independentes dedicados à "pirataria de dados", enclaves verdes e social-democratas, enclaves de Trabalho-Zero, zonas anarquistas liberadas etc. A economia de informação que sustenta esta diversidade é chamada de Rede. Os enclaves (e o título do livro) são Ilhas na Rede.
 Os Assassins2 medievais fundaram um "Estado" que consistia de uma rede de remotos castelos em vales montanhosos, separados entre si por milhares de quilômetros, estrategicamente invulneráveis a qualquer invasão, conectados por um fluxo de informações conduzidas por agentes secretos, em guerra com todos os governos, e dedicado apenas ao saber. A tecnologia moderna, culminando no satélite espião, reduz esse tipo de autonomia a um sonho romântico. Chega de ilhas piratas! No futuro, essa mesma tecnologia - livre de todo controle político - pode tornar possível um mundo inteiro de zonas autônomas. Mas, por enquanto, o conceito continua sendo apenas ficção científica - pura especulação.
 Estamos nós, que vivemos no presente, condenados a nunca experimentar a autonomia, nunca pisarmos, nem que seja por um momento
sequer, num pedaço de terra governado apenas pela liberdade? Estamos reduzidos a sentir nostalgia pelo passado, ou pelo futuro? Devemos esperar até que o mundo inteiro esteja livre do controle político para que pelo menos um de nós possa afirmar que sabe o que é ser livre? Tanto a lógica quanto a
emoção condenam tal suposição. A razão diz que o indivíduo não pode lutar por aquilo que não conhece. E o coração revolta-se diante de um universo tão cruel a ponto de cometer tais injustiças justamente com a nossa, dentre todas as gerações da humanidade.
 Dizer "só serei livre quando todos os seres humanos (ou todas as criaturas sensíveis) forem livres", é simplesmente enfurnar-se numa espécie de estupor de nirvana, abdicar da nossa própria humanidade, definirmo-nos como fracassados.
Acredito que, dando consequência ao que aprendemos com histórias sobre "ilhas na rede", tanto do passado quanto do futuro, possamos coletar evidências suficientes para sugerir que um certo tipo de "enclave livre" não é apenas possível nos dias de hoje, mas é também real. Toda minha pesquisa e minhas especulações cristalizaram-se em torno do conceito de ZONA AUTÔNOMA TEMPORÁRIA (daqui por diante abreviada por TAZ). Apesar de sua força sintetizadora para o meu próprio pensamento, não pretendo, no entanto, que a TAZ seja percebida como algo mais do que um ensaio ("uma tentativa"), uma sugestão, quase que uma fantasia poética. Apesar do ocasional excesso de entusiasmo da minha linguagem, não estou tentando construir dogmas políticos. Na verdade,
deliberadamente procurei não definir o que é a TAZ - circundo o assunto, lançando alguns fachos exploratórios. No final, a TAZ é quase autoexplicativa. Se o termo entrasse em uso seria compreendido sem dificuldades... compreendido em ação.

CAPÍTULO 2 : Esperando Pela Revolução

 Como é que o mundo "virado-de-cabeça-para-baixo" sempre acaba se endireitando? Por quê, como estações no Inferno, após a revolução sempre vem uma reação? Levante e insurreição são palavras usadas pelos historiadores para caracterizar revoluções que fracassaram - movimentos que não chegaram a terminar seu ciclo, a trajetória padrão: revolução, reação, traição, a fundação de um Estado mais forte e ainda mais opressivo -, a volta completa, o eterno retorno da história, uma e outra vez mais, até o ápice: botas marchando eternamente sobre o rosto da humanidade.
 Ao falhar em completar esta trajetória, o levante sugere a possibilidade de um movimento fora e além da espiral hegeliana do "progresso", que secretamente não passa de um ciclo vicioso. Surgo: levante, revolta. Insurgo: rebelar-se, levantar-se. Uma ação de independência. Um adeus a essa miserável paródia da roda kármica, histórica futilidade revolucionária. O slogan "Revolução!" transformou-se de sinal de alerta em toxina, uma maligna e pseudo-gnóstica armadilha-dodestino, um pesadelo no qual, não importa o quanto lutamos, nunca nos livramos do maligno ciclo infinito que incuba o Estado, um Estado após o outro, cada "paraíso" governado por um anjo ainda mais cruel.
 Se a História É "Tempo", como declara ser, então um levante é um momento que surge acima e além do Tempo, viola a "lei" da História. Se o Estado É História, como declara ser, então o levante é o momento proibido, uma imperdoável negação da dialética como dançar sobre um poste e escapar por uma fresta, uma manobra xamanística realizada num "ângulo impossível" em relação ao universo.
 A História diz que uma Revolução conquista "permanência", ou pelo menos alguma duração, enquanto o levante é "temporário". Nesse sentido, um levante é uma "experiência de pico" se comparada ao padrão "normal" de consciência e experiência. Como os festivais, os levantes não podem acontecer todos os dias - ou não seriam "extraordinários". Mas tais momentos de intensidade moldam e dão sentido a toda uma vida. O xamã retorna - uma pessoa não pode Ficar no telhado para sempre - mas algo mudou, trocas e integrações ocorreram - foi feita uma diferença.
 Poderia se dizer que essa é uma postura de desespero. O que foi feito do sonho anarquista, do fim do Estado, da comuna, da zona autônoma com duração, da sociedade livre, da cultura livre? Devemos abandonar esta esperança em troca de um acte gratuit existencialista? A ideia não é mudar a consciência, mas mudar o mundo.
 Aceitaria isso como uma crítica justa. No entanto, daria duas respostas. Primeiro, a revolução até hoje não nos levou à concretização desse sonho. A visão ganha vida no momento do levante - mas assim que a "Revolução" triunfa e o Estado retorna, o sonho e o ideal já estão traídos. Não deixo de ter esperança, nem deixo de ansiar por mudanças - mas desconfio da palavra revolução. Em segundo lugar, mesmo se substituirmos a abordagem revolucionária pelo conceito de levante transformando-se espontaneamente numa cultura anarquista, a nossa situação histórica específica não é propícia para tarefa tão vasta. Absolutamente nada, além de um martírio inútil, poderia resultar de um confronto direto com o Estado terminal, esta megacorporação/Estado de informações, o império do Espetáculo e da Simulação. Todos os seus revólveres estão apontados para nós. Por outro lado, com nosso armamento miserável, não temos em que atirar, a não ser numa histerese, num vazio rígido, num fantasma capaz de transformar todo lampejo num ectoplasma de informação, uma sociedade de capitulação regida pela imagem do policial e pelo olho absorvente da tela de TV.
 Em resumo, não queremos dizer que a TAZ é um fim em si mesmo, substituindo todas as outras formas de organização, táticas e objetivos. Nós a recomendamos porque ela pode fornecer a qualidade do enlevamento associado ao levante sem necessariamente levar à violência e ao martírio. A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la. Uma vez que o Estado se preocupa primordialmente com a Simulação, e não com a substância, a TAZ pode, em relativa paz e por um bom tempo, "ocupar" clandestinamente essas áreas e realizar seus propósitos festivos. Talvez algumas pequenas TAZs tenham durado por gerações - como alguns enclaves rurais - porque passaram desapercebidas, porque nunca se relacionaram com o Espetáculo, porque nunca emergiram para fora daquela vida real que é invisível para os agentes da Simulação.
 A Babilônia toma suas abstrações como realidades. É precisamente dentro dessa margem de erro que a TAZ surge. Iniciar a TAZ pode envolver várias táticas de violência e defesa, mas seu grande trunfo
está em sua invisibilidade - o Estado não pode reconhecê-la porque a História não a define. Assim que a TAZ é nomeada (representada, mediada), ela deve desaparecer, ela vai desaparecer, deixando para trás um invólucro vazio, e brotará novamente em outro lugar, novamente invisível, porque é indefinível pelos termos do Espetáculo. Assim sendo, a TAZ é uma tática perfeita para uma época em que o Estado é onipresente e todo-poderoso mas, ao mesmo tempo, repleto de rachaduras e fendas. E, uma vez que a TAZ é um microcosmo daquele "sonho anarquista" de uma cultura de liberdade, não consigo pensar em tática melhor para prosseguir em direção a esse objetivo e, ao mesmo tempo, viver alguns de seus benefícios aqui e agora.
 Em suma, uma postura realista exige não apenas que desistamos de esperar pela "Revolução", mas também que desistamos de desejá-la. "Levantes", sim - sempre que possível, até mesmo com o risco de violência. Os espasmos do Estado Simulado serão "espetaculares", mas na maioria dos casos a tática mais radical será a recusa de participar da violência espetacular, retirar-se da área de simulação, desaparecer.
 A TAZ é um acampamento de guerrilheiros ontologistas: ataque e fuja. Continue movendo a tribo inteira, mesmo que ela seja apenas dados na web. A TAZ deve ser capaz de se defender; mas, se possível, tanto o "ataque" quanto a "defesa" devem evadir a violência do Estado, que já não é
uma violência com sentido. O ataque é feito às estruturas de controle, essencialmente às ideias. As táticas de defesa são a "invisibilidade", que é uma arte marcial, e a "invulnerabilidade", uma arte "oculta" dentro das artes marciais. A "máquina de guerra nômade" conquista sem ser notada e se move antes do mapa ser retificado. Quanto ao futuro, apenas o autônomo pode planejar a autonomia, organizar-se para ela, criá-la. E uma ação conduzida por esforço próprio. O primeiro passo se assemelha a um satori - a constatação de que a TAZ começa com um simples ato de percepção.

CAPÍTULO 3 : A Psicotopologia da Vida Contidiana

 O conceito da TAZ surge inicialmente de uma crítica à revolução, e de uma análise do levante. A revolução classifica o levante como um "fracasso". Mas, para nós, um levante representa uma possibilidade muito mais interessante, do ponto de vista de uma psicologia de libertação, do que
as "bem-sucedidas" revoluções burguesas, comunistas, fascistas etc.
 Um outro elemento gerador do conceito da TAZ surge de um processo histórico que eu chamo de "fechamento do mapa". O último pedaço da Terra não reivindicado por uma nação-Estado foi devorado em 1899. O nosso século é o primeiro sem terra incógnita, sem fronteiras. Nacionalidade é o princípio mais importante do conceito de "governo" -nenhuma ponta de rocha no Mar do Sul pode ficar em aberto, nem um vale remoto, sequer a lua ou os planetas. Essa é a apoteose do "gangsterismo territorial". Nenhum centímetro quadrado da Terra está livre da polícia ou dos impostos... em teoria.
 O "mapa" é uma malha política abstraía, uma proibição gigantesca imposta pela cenoura/cacetete condicionante do Estado "Especializado", até que para a maioria de nós o mapa se torne o território -
não mais a "Ilha da Tartaruga3", mas os "Estados Unidos". E ainda assim o mapa continua sendo uma abstração, porque não pode cobrir a Terra com a precisão 1:1. Dentro das complexidades fractais da geografia atual, o mapa pode detectar apenas malhas dimensionais. Imensidões embutidas e escondidas escapam da fita métrica. O mapa não é exato, o mapa não pode ser exato.
 A Revolução fechou-se, mas a possibilidade do levante está aberta. Por ora, concentramos nossas forças em "irrupções"  temporárias, evitando enredamentos com "soluções permanentes".
 O mapa está fechado, mas a zona autônoma está aberta. Metaforicamente, ela se desdobra por dentro das dimensões fractais invisíveis à cartografia do Controle. E aqui podemos apresentar o conceito de psicotopologia (e psicotopografia) como uma "ciência" alternativa àquela da pesquisa e criação de mapas e "imperialismo psíquico" do Estado. Apenas a psicotopografia é capaz de desenhar mapas da realidade em escala 1:1, porque apenas a mente humana tem a complexidade suficiente para modelar o real. Mas um mapa 1:1 não pode "controlar" seu território, porque é completamente idêntico a esse território. Ele pode ser usado apenas para sugerir ou, de certo modo, indicar através de gestos algumas características. Estamos à procura de "espaços" (geográficos, sociais, culturais, imaginários) com potencial de florescer como zonas autônomas - dos momentos em que estejam relativamente abertos, seja por negligência do Estado ou pelo fato de terem passado despercebidos pelos cartógrafos, ou por qualquer outra razão. A psicotopologia é a arte de submergir em busca de potenciais TAZs.
 O fim da Revolução e o fechamento do mapa são, no entanto, apenas as fontes negativas da TAZ: ainda há muito a dizer sobre as suas inspirações positivas. Reação somente não pode gerar a energia necessária para "manifestar" uma TAZ. Um levante também precisa ser a favor de alguma coisa.
 l. Em primeiro lugar, podemos falar de uma antropologia natural da TAZ. A família nuclear é a unidade base da sociedade de consenso, mas não da TAZ. ("Famílias! Os avaros do amor! Como eu as odeio!" - Gide.) A família nuclear, com suas consequentes "dores edipianas", parece ter sido uma invenção neolítica, uma resposta à "revolução agrícola" com sua escassez e hierarquia impostas. O modelo paleolítico é mais primário e mais radical: o bando. O típico bando nômade ou semi-nômade de
caçadores/coletores é formado por cerca de cinquenta pessoas. Em sociedades tribais mais populosas, a estrutura de bando é mantida por clãs dentro da tribo, ou por confrarias como sociedades secretas ou iniciáticas, sociedades de caça ou de guerra, associações de gênero, as "repúblicas de crianças" e por aí adiante. Se a família nuclear é gerada pela escassez (e resulta em avareza), o bando é gerado pela abundância (e produz prodigalidade). A família é fechada, geneticamente, pela posse masculina
sobre as mulheres e crianças, pela totalidade hierárquica da sociedade agrícola/industrial. Por outro lado, o bando é aberto - não para todos, é claro, mas para um grupo que divide afinidades, os iniciados que juram sobre um laço de amor. O bando não pertence a uma hierarquia maior, ele é parte de um padrão horizontalizado de costumes, parentescos, contratos e alianças, afinidades espirituais etc. (A sociedade dos índios norteamericanos preserva até hoje certos aspectos dessa estrutura.)
 Muitas forças estão trabalhando - de forma invisível - para dissolver a família nuclear e resgatar o bando em nossa própria sociedade da Simulação pós-Espetacular. Rupturas na estrutura do trabalho refletem a "estabilidade" estilhaçada da unidade-lar e da unidade-família. Hoje em dia, o "bando" de alguém inclui amigos, ex-esposos e amantes, pessoas conhecidas em diferentes empregos e encontros, grupos de afinidade, redes de pessoas com interesses específicos, listas de discussão etc. Cada vez mais fica evidente que a família nuclear se torna uma armadilha, um ralo cultural, uma secreta implosão neurótica de átomos rompidos. E a contra-estratégia óbvia emerge de forma espontânea na quase inconsciente redescoberta da possibilidade - mais arcaica e, no entanto, mais pós-industrial - do bando.
 2. A TAZ como um festival. Stephen Pearl Andrews certa vez elaborou uma imagem da sociedade anarquista como um jantar, no qual todas as estruturas de autoridade se dissolvem no convívio e na celebração (veja o apêndice C). Aqui poderíamos também invocar Fourier e seu conceito dos sentidos como base de transformação social - "toque do cio" e "gastrosofia", e seu louvor às negligenciadas implicações do olfato e do paladar. Os antigos conceitos de jubileu e bacanal se originaram a partir da
intuição de que certos eventos existem fora do "tempo profano", a unidade de medida da História e do Estado. Essas ocasiões literalmente ocupavam espaços vazios no calendário – intervalos intercalados. Na Idade Média, quase um terço do ano era reservado para feriados e dias santos. Talvez os protestos contra a reforma no calendário tenham tido menos a ver com os "onze dias perdidos" do que com a sensação de que a ciência imperial estava conspirando para preencher esses espaços vazios dentro do calendário, onde a liberdade das pessoas havia se concentrado. Um golpe de Estado, um mapeamento do ano, a dominação do próprio tempo, transformando o cosmo orgânico num universo que funciona como um relógio. A morte do festival.
 Os que participam de levantes invariavelmente notam seus aspectos festivos, mesmo em meio à luta armada, perigo e risco. O levante é como um bacanal que escapou (ou foi forçado a desaparecer) de seu intervalo intercalado e agora está livre para aparecer em qualquer lugar ou a qualquer hora. Liberto do tempo e do espaço, ele, no entanto, possui bom faro para o amadurecimento dos eventos e afinidade com o genius loci. A ciência da psicotopologia indica "fluxos de força" e "pontos de poder" (para usar metáforas ocultistas) que localizam a TAZ num espaço-temporal, ou que, pelo menos, ajudam a definir sua relação com um determinado momento e local.
 A mídia nos convida a "celebrar os momentos da nossa vida" com a unificação espúria entre mercadoria e espetáculo, o famoso nãoevento da representação pura. Em resposta a tamanha obscenidade, nós temos, por um lado, o espectro da recusa (comentado pelos situacionistas John Zerzan, Bob Black et al.) e, por outro, a emergência de uma cultura festiva distanciada ou mesmo escondida dos pretensos gerentes do nosso lazer. "Lute pelo direito de festejar" não é, na verdade, uma paródia da luta radical, mas uma nova manifestação dessa luta, apropriada para uma época que oferece a TV e o telefone como maneiras de "alcançar e tocar" outros seres humanos, maneiras de "estar junto!"
 Pearl Andrews estava certo: o jantar já é "a semente de uma nova sociedade tomando forma dentro do invólucro da antiga" (IWW Preamble). A "reunião tribal" dos anos 60, o conclave florestal de eco-sabotadores, o Beltane4 idílico dos neo-pagãos, as conferências anarquistas, as festas gays...
as festas de aluguel no Harlem dos anos 20, as casas noturnas, os banquetes, os piqueniques dos antigos libertários - devemos perceber que todos esses eventos são, de certo modo, "zonas libertas", ou pelo menos TAZs em potencial. Seja ela apenas para poucos amigos, como é o caso de um jantar,
ou para milhares de pessoas, como um carnaval de rua, a festa é sempre "aberta" porque não é "ordenada". Ela pode até ser planejada, mas se ela não acontece é um fracasso. A espontaneidade é crucial.
 A essência da festa: cara a cara, um grupo de seres humanos coloca seus esforços em sinergia para realizar desejos mútuos, seja por boa comida e alegria, por dança, conversa, pelas artes da vida. Talvez até mesmo por prazer erótico ou para criar uma obra de arte comunal, ou para alcançar
o arroubamento do êxtase. Em suma, uma "união de únicos" (como coloca Stirner) em sua forma mais simples, ou então, nos termos de Kropotkin, um básico impulso biológico de "ajuda mútua". (Aqui devemos mencionar a "economia do excesso" de Bataille e sua teoria sobre a cultura potlatch.)
 3. O conceito de nomadismo psíquico (ou, como o chamamos por brincadeira, "cosmopolitismo desenraizado") é vital para a formação da realidade da TAZ. Aspectos desse fenômeno foram discutidos por Deleuze e Guattari em Tratado de Nomadologia: a máquina de guerra, por Lyotard em Driftworks e por vários autores na edição "Oásis" da Semiotext(e). Preferimos o termo "nomadismo psíquico" a "nomadismo urbano" ou "nomadologia", "ações à deriva" etc., simplesmente para poder juntar todos
esses conceitos num único sistema complexo que será estudado à luz da emergência da TAZ.
 "A morte de Deus", que de certo modo representou a descentralização do "projeto europeu", abriu a possibilidade de uma visão de mundo pós-ideológica e multifacetada, capaz de se mover, de forma
"desenraizada", da filosofia para o mito tribal, da ciência natural para o taoísmo. Capaz de enxergar, pela primeira vez, através de olhos caleidoscópicos como os olhos de algum inseto dourado, cada faceta apresentando a concepção de outro mundo inteiramente diverso.
 Mas essa visão foi alcançada às custas de se viver numa época na qual a velocidade e o "fetichismo da mercadoria" criaram uma unidade tirânica e falsa que tende a ofuscar toda a diversidade cultural e toda a individualidade para que "todo lugar seja igual ao outro". Este paradoxo cria "ciganos", viajantes psíquicos guiados pelo desejo ou pela curiosidade, errantes com laços de lealdade frouxos (na verdade, desleais ao "projeto europeu", que perdeu todo o seu charme e vitalidade), desligados de qualquer local ou tempo determinado, em busca de diversidade e aventura... Essa descrição engloba não apenas artistas e intelectuais classe X, como também trabalhadores imigrantes, refugiados, os "sem-teto", turistas, e todos aqueles que vivem em trailers - assim como pessoas que "viajam" na internet, sem talvez jamais saírem de seus quartos (ou aquelas como Thoreau, que "viajou demais – em Concord"), para finalmente englobar "todo mundo", todos nós, vivendo em nossos automóveis, em nossas férias,
aparelhos de TV, livros, filmes, telefones, trocando de emprego, mudando de "estilo de vida", de religião, de dieta etc. etc.
 O nomadismo psíquico como uma tática, aquilo que Deleuze e Guattari metaforicamente chamam de "máquina de guerra", muda o paradoxo de um modo passivo para um modo ativo e talvez até mesmo "violento". Os últimos espasmos de "Deus" e seus sacolejos no leito de morte vêm se arrastando por tanto tempo - nas formas do capitalismo, fascismo e comunismo, por exemplo - que ainda existe muita "destruição criativa" para ser executada por comandos ou apaches (literalmente, inimigos) pós-bakunianos e pós-nietzscheanos. Esses nômades exercitam a razzia, são corsários, são vírus. Sentem tanto o desejo quanto a necessidade de TAZs, acampamentos de tendas negras sob as estrelas do deserto, interzonas, oásis fortificados escondidos nas rotas das caravanas secretas, trechos de selva e sertões "liberados", áreas proibidas, mercados negros e bazares underground.
 Esses nômades orientam seu percurso por estrelas estranhas, que podem ser núcleos luminosos de dados no ciberespaço ou, talvez, alucinações. Abra um mapa do território; sobre ele, coloque um mapa das mudanças políticas; sobre ele, ponha um mapa da internet, especialmente da contra-net, com sua ênfase no fluxo clandestino de informações e logística; e, por último, sobre tudo isso, o mapa 1:1 da imaginação criativa, estética, valores. A malha resultante ganha vida, animada por inesperados redemoinhos e explosões de energia, coagulações de luz, túneis secretos, surpresas.

CAPÍTULO 4 : A Internet e a Web

 O próximo elemento que contribui para a TAZ é tão vasto e ambíguo que precisa de uma seção à parte somente para ele.
 Já falamos da net, que pode ser definida como a totalidade de todas as transferências de informações e de dados. Algumas dessas transferências são privilégio e exclusividade de várias elites, o que lhes confere um aspecto hierárquico. Outras transações são abertas a todos - e deste modo a internet também possui um aspecto horizontal e nãohierárquico. Dados militares e de segurança nacional são restritos, assim como informações bancárias e monetárias, e outras informações deste tipo. Porém, de maneira geral, a telefonia, o sistema postal, os bancos de dados públicos etc. são acessíveis a todos. Desta forma, de dentro da net começou a emergir um tipo de contra-net, que nós chamaremos de web (como se a internet fosse uma rede de pesca e a web as teias de aranha tecidas entre os interstícios e rupturas da net). Em termos gerais, empregaremos a palavra web para designar a estrutura aberta, alternada e horizontal de troca de informações, ou seja, a rede não-hierárquica, e reservaremos o termo contra-net para indicar o uso clandestino, ilegal e rebelde da web, incluindo a pirataria de dados e outras formas de parasitar a própria net. A net, a web e a contra-net são partes do mesmo complexo, e se mesclam em inúmeros pontos. Esses termos não foram criados para definir áreas, mas para sugerir tendências.
 (Digressão: Antes de condenar a web ou a contra-net por seu "parasitismo", que jamais poderia ser uma força verdadeiramente revolucionária, pergunte-se o que significa "produção" na era da Simulação. Qual é a "classe produtora"? Talvez você seja forçado a admitir que esses termos perderam o sentido. De qualquer forma, as respostas a essas perguntas são tão complexas que a TAZ tende a ignorá-las por completo e simplesmente escolhe o que pode usar. "Cultura é nossa natureza", e nós somos os corvos ladrões, os caçadores/coletores do mundo da Comunicação Tecnológica.)
 Supõe-se que as formas atuais da web não-oficial sejam ainda bastante primitivas: a rede marginal de zines, as redes BBS5, softwares piratas, grampos telefônicos, alguma influência na mídia impressa e no rádio e quase nenhuma nos outros grandes canais de comunicação - nenhuma emissora de TV, nenhum satélite, nenhuma fibra ótica, nenhum cabo etc. etc. No entanto, a própria net apresenta um padrão de relações entre sujeitos ("usuários") e objetos ("dados") em constante mutação/evolução. A natureza dessas relações tem sido explorada exaustivamente, de McLuhan a Virilio. Usaríamos páginas e mais páginas para "provar" o que agora "todo mundo já sabe". Em vez de rediscutir tudo isso, estou interessado em investigar como essas relações em constante evolução sugerem modos de implementação para a TAZ.
 A TAZ possui uma localização temporária mas real no tempo, e uma localização temporária mas real no espaço. Porém, obviamente, ela também precisa ter um local dentro da web, outro tipo de local: não real, mas virtual; não imediato, mas instantâneo. A web não fornece apenas um apoio logístico à TAZ, também ajuda a criá-la. Grosso modo, poderíamos dizer que a TAZ "existe" tanto no espaço da informação quanto no "mundo real". A web pode compactar muito tempo, em forma de dados, num
"espaço" infinitesimal. Dizemos que a TAZ, por ser temporária, não oferece algumas das vantagens de uma liberdade com duração e de uma localização mais ou menos estável. Mas a web oferece uma espécie de substituto para parte disso - ela pode informar a TAZ, desde o seu início, com vastas quantidades de tempo e espaço compactados que estavam sendo "subutilizados" na forma de dados.
 Nesse ponto da evolução da web, e considerando nossas exigências por algo que seja palpável e sensual, devemos considerar a web fundamentalmente como um sistema de suporte, capaz de transmitir informações de uma TAZ a outra, ou defender a TAZ, tornando-a "invisível" ou dando-lhe garras, conforme a situação exigir. Porém mais do que isso: se a TAZ é um acampamento nômade, então a web ajuda a criar épicos, canções, genealogias e lendas da tribo. Ela fornece as trilhas de
assalto e as rotas secretas que compõem o fluxo da economia tribal. Ela até mesmo contém alguns dos caminhos que as tribos seguirão só no futuro, alguns dos sonhos que eles viverão como sinais e presságios.
 Nossa web não depende de nenhuma tecnologia de computação para existir. O boca-a-boca, os correios, a rede marginal de zines, as "árvores telefônicas" e coisas do gênero são suficientes para se construir uma rede de informação. A chave não é o tipo ou o nível da tecnologia envolvida, mas a abertura e a horizontalidade da estrutura. Contudo, o próprio conceito da net implica o uso de computadores. Na imaginação da ficção científica, a net é conduzida para a condição de ciberespaço (como Tron e no livro de William Gibson, Neuromancer) e para a pseudo-telepatia da "realidade virtual". Como fã do cyberpunk, não consigo deixar de antever o importante papel que o "hacking da realidade" terá na criação das TAZs. Assim como Gibson e Sterling, acredito que a net oficial jamais conseguirá conter a web ou a contra-net - a pirataria de dados, as transmissões nãoautorizadas e o fluxo livre de informações não podem ser detidos. (Na verdade, no meu entender, a Teoria do Caos pressupõe que nenhum sistema de controle universal seja possível.)
 No entanto, deixando de lado as meras especulações sobre o futuro, devemos encarar uma questão séria sobre a web e a tecnologia que ela envolve. A TAZ deseja, acima de tudo, evitar a mediação, experimentar a existência de forma imediata. A essência da TAZ é "peito-a-peito", como dizem os sufis, ou cara-a-cara. Mas, MAS: a essência da web é mediação, onde as máquinas são nossos embaixadores - a carne é irrelevante exceto como um terminal, com todas as conotações sinistras do termo.
 Talvez a melhor maneira para a TAZ encontrar seu próprio espaço seja adotando duas atitudes aparentemente contraditórias em relação à alta tecnologia e sua apoteose, a net: a) aquilo que podemos chamar de Quinto Estado, a posição neo-paleolítica, pós-situacionista e ultra-verde, que se traduz como um argumento ludita contra a mediação e contra a internet; e b) os cyberpunks utópicos, os futuro-libertários, os hackers da realidade e seus aliados, que percebem a internet como um passo adiante na
nossa evolução, e que acreditam que qualquer possível efeito maligno da mediação possa ser superado, ao menos depois de termos liberado os meios de produção.
 A TAZ concorda com os hackers porque deseja - em parte - ganhar existência através da net, e até mesmo através da mediação da net. Mas ela também concorda com os partidários do ambientalismo porque possui uma intensa percepção de si mesma como corpo e sente nojo da cibergnose, a tentativa de transcender o corpo através da instantaneidade e da simulação. A TAZ tende a condenar a dicotomia entre tecnologia e antitecnologia como um equívoco: como é um equívoco a maioria das dicotomias, onde opostos aparentes acabam se revelando falsificações ou mesmo alucinações provocadas pela semântica. Essa é uma forma de dizer que a TAZ quer viver neste mundo, não na ideia de outro mundo, um mundo visionário qualquer nascido de uma falsa unificação (todo verde OU todo metal), que só pode ser mais um castelo nas nuvens (ou, como disse Alice, "Geléia ontem ou geléia amanhã, mas jamais geléia hoje").
 A TAZ é "utópica" no sentido que imagina uma intensificação da vida cotidiana ou, como diriam os surrealistas, a penetração do Maravilhoso na vida. Mas não pode ser utópica no sentido literal do termo, sem local, ou "lugar do lugar nenhum" A TAZ existe em algum lugar. Ela fica na interseção de muitas forças, como um ponto de poder pagão na junção das misteriosas linhas de realidades paralelas, visível para o adepto em detalhes do terreno, da paisagem, das correntes de ar, da água, dos animais e, aparentemente, sem qualquer relação um com o outro. Mas agora essas linhas não pertencem apenas ao tempo e ao espaço. Algumas existem unicamente "dentro" da web, apesar de possuírem também interseção com o tempo e os lugares reais. Talvez algumas dessas linhas sejam "extraordinárias", no sentido que não existem convenções para sua classificação. Talvez essas linhas possam ser melhor estudadas à luz da ciência do caos do que à luz da sociologia, estatística, economia etc. Os padrões de força que geram a existência da TAZ têm algo em comum com estes caóticos "Estranhos Atratores" que existem, por modo de dizer, entre as dimensões.
 Por uma característica de sua própria natureza, a TAZ faz uso de qualquer meio disponível para concretizar-se - pode ganhar vida tanto numa caverna quanto numa cidade espacial - mas, acima de tudo, ela vai viver, agora, ou o quanto antes, sob qualquer forma, seja ela suspeita ou desorganizada. Espontaneamente, sem preocupar-se com ideologias ou antiideologias. Ela vai fazer uso do computador porque o computador existe, mas também usará poderes tão completamente divorciados da alienação e da simulação que lhe garantirão um certo paleolitismo psíquico, um espírito xamânico primordial que vai "infectar" até a própria net (o verdadeiro sentido do cyberpunk, como eu o entendo). Porque a TAZ é uma intensificação, um excesso, uma abundância, um potlatch, a vida vivida em vez de sobrevivida (a chorosa marca dos anos 80), e não pode ser definida como tecnológica ou anti-tecnológica. Ela se contradiz, como alguém que verdadeiramente despreza fantasmas e aparições, porque deseja ser, a qualquer custo ou prejuízo para a "perfeição" ou imobilidade final.
 No Mandelbrot Set6 e em suas variações no campo da computação gráfica, encontramos – num universo fractal - mapas que estão embutidos e escondidos dentro de mapas que estão dentro de outros mapas etc., até o limite do poder do computador. Qual é a função deste mapa que de certo modo apresenta uma escala de 1:1 em relação à dimensão fractal? O que podemos fazer com ele, além de admirar sua elegância psicodélica?
 Se fôssemos imaginar um mapa da informação - uma projeção cartográfica da net como um todo - teríamos que incluir os elementos do caos que já começaram a aparecer, por exemplo, nas operações de processos paralelos complexos, nas telecomunicações, na transferência de "dinheiro" eletrônico, nos vírus, na guerrilha dos hackers etc.
 Cada uma dessas "áreas" de caos poderiam ser representadas por topografias semelhantes às do Mandeibrot Set, de forma que as "penínsulas" ficassem embutidas ou escondidas dentro do mapa e quase "desaparecessem". Esta "escrita" - que em parte desaparece e em parte se esconde - representa o próprio processo que já é parte intrínseca da net, não totalmente visível nem para si mesmo, in-Controlável. Em outras palavras, o M Set, ou qualquer coisa semelhante, pode vir a ser útil na "armação" (em todos os sentidos da palavra) para o surgimento da contra-net como um processo caótico ou, para usar um termo de Prigogine, como uma "evolução criativa". No mínimo, o M Set serve como uma metáfora para o "mapeamento" da interface da TAZ com a net como um desaparecimento da informação. Toda "catástrofe" na net é um nódulo de poder para a web, a contra-net. A net será prejudicada pelo caos, enquanto que a web vai prosperar nele.
 Seja através de uma simples pirataria de dados, ou do desenvolvimento de formas mais complexas de relacionamento com o caos, o hacker da web, o cibernauta da TAZ, encontrará maneiras de aproveitar as perturbações, quedas e breakdowns da net (maneiras de gerar informação a partir da "entropia"). O hacker da TAZ trabalhará para a evolução de conexões fractais clandestinas como um rastreador de fragmentos de informações, um contrabandista, um chantagista, talvez até mesmo como um ciber-terrorista. Estas conexões, e as diferentes informações que fluem entre elas e por elas, formarão as "válvulas de poder" para a emergência da própria TAZ - como é necessário roubar energia elétrica dos monopólios distribuidores de eletricidade para iluminar uma casa abandonada que foi invadida.
 Desta forma, a web, para produzir situações propícias para a TAZ, irá paralisar a net. Mas também podemos conceber esta estratégia como uma tentativa de arquitetar a construção de uma net alternativa e autônoma, "livre" e não parasítica, que servirá como a base de uma "nova sociedade emergindo do invólucro da antiga". Em termos práticos, a contranet e a TAZ podem ser consideradas como fins em si mesmas - mas, em teoria, também podem ser vistas como formas da batalha para se forjar uma
realidade diferente.
 Uma vez dito isso, devemos admitir algumas falhas nos computadores, algumas questões ainda sem resposta, especialmente em relação aos PCs (computadores pessoais).
 A história da rede de computadores, BBS e várias outras experiências em eletro-democracia tem sido até agora mais um hobby do que qualquer outra coisa. Muitos anarquistas e liberais mantêm uma grande esperança no PC como uma arma para a libertação e auto-liberação - mas não temos ainda nenhum ganho real, nenhuma liberdade palpável.
 Não tenho interesse algum por uma hipotética classe empreendedora emergente formada por processadores de dados autônomos que logo estarão capacitados para administrar uma grande empresa de queijos ou qualquer outro trabalho de merda para várias corporações e burocracias. No entanto, não é preciso ser bidu para prever que esta "classe" vai gerar sua subclasse - um tipo de proletariado mauricinho: por exemplo, donas-de-casa que trarão um "segundo salário" para suas famílias transformando suas próprias casas em lojinhas eletrônicas, formando pequenas tiranias de trabalho, onde o "patrão" é a rede de computadores.
 Também não me impressionam os tipos de informações e serviços oferecidos pelas redes contemporâneas "radicais". Dizem que em algum lugar existe uma "economia da informação". Talvez, mas a info trocada pêlos canais "alternativos" de BBS parece ser constituída integralmente de conversa fiada ou papo tecnológico. Isso é uma nova economia? Ou apenas um passatempo para os aficionados? OK, os PCs causaram uma nova "revolução da imprensa". OK, redes marginais na web estão evoluindo. OK, posso agora fazer seis telefonemas ao mesmo tempo. Mas que diferença isso faz para minha vida diária?
 Francamente, eu já possuía muitos dados para alimentar meus sentidos e percepções: livros, filmes, TV, teatro, telefone, correio, estados alterados de consciência, e daí por diante. Preciso realmente de um PC para obter ainda mais informações desse tipo? Você me oferece informação secreta? Bem... talvez. Fico tentado, mas eu exijo segredos maravilhosos, e não apenas os números de telefones que não estão na lista ou trivialidades sobre a polícia e os políticos. Sobretudo, quero que os computadores me forneçam informações relacionadas a bens reais - "as coisas boas da vida", como o IWW Preamble diz. Agora, já que acuso os hackers e os usuários das BBS de possuírem uma irritante vacuidade intelectual, devo descer das nuvens barrocas da teoria e da crítica e explicar o que quero dizer com bens reais.
 Eu diria que tanto por razões políticas quanto culturais eu desejo boa comida, uma comida melhor do que esta que posso obter do capitalismo - não poluída e agraciada com sabores fortes e naturais. Para complicar, imagine que a comida que eu desejo é ilegal - talvez leite não pasteurizado, ou a deliciosa fruta cubana mamey, que não pode ser importada pelos EUA porque suas sementes são alucinógenas (pelo menos foi isso que me disseram). Não sou um fazendeiro. Finja que eu seja um importador de
perfumes raros e afrodisíacos, e suponha que a maior parte do meu estoque seja ilegal. Ou talvez eu apenas queira trocar serviços de processamento de dados por nabos orgânicos, mas recuse a declará-lo no imposto de renda (como a lei exige, acredite se puder). Ou talvez eu queira encontrar-me com outros seres humanos para atos de prazer de comum acordo, mas ilegais (isto já foi tentado, mas todas as BBS de sexo hardcore foram proibidas - e de que serve um mundo underground com uma torpe segurança?). Em suma, suponha que eu esteja cansado de mera informação, do fantasma dentro da máquina. De acordo com vocês, os computadores já deveriam ser capazes de possibilitar a realização dos meus desejos por comida, drogas, sexo, sonegação fiscal. Então, qual é o problema? Por que isso não está acontecendo?
 A TAZ aconteceu, está acontecendo e vai acontecer com ou sem o computador. Mas para que a TAZ realize plenamente o seu potencial, ela deve tornar-se menos um caso de combustão espontânea e mais uma situação de "ilhas na net". A net, ou melhor, a contra-net assume a promessa de ser um aspecto integral da TAZ, uma adição que irá multiplicar o seu potencial, um salto "quantum", um salto enorme em termos de complexidade e significância. A TAZ agora deve existir dentro de um mundo de espaço puro, o mundo dos sentidos. No limiar, mesmo num ponto de evanescência, a TAZ deve combinar informações e desejos para realizar sua aventura (seu "acontecimento"), para preencher-se até as bordas de seu destino, para intensificar-se com sua própria emergência.
 Talvez a escola neo-paleolítica tenha razão quando diz que todas as formas de alienação e mediação devem ser destruídas ou abandonadas como condição para que nossas metas sejam alcançadas - ou talvez o anarquismo verdadeiro só possa ser realizado no espaço sideral, como dizem
algums libertários futurólogos. Mas a TAZ não se preocupa muito com o "foi" ou o "será". A TAZ está interessada em resultados, ataques com êxito à realidade consensual, conquistas de patamares de vida mais altos e intensos. Se o computador não pode ser utilizado para este projeto, então ele precisa ser dispensado. Minha intuição, no entanto, diz que a contra-net já está se formando, ou talvez já exista - embora eu não possa prová-lo. A teoria da TAZ está, em grande parte, baseada nesta intuição. É claro que a nossa web também encerra redes de troca não-computadorizadas, como a samizdat, o mercado negro etc. - mas o pleno potencial de redes de informação nãohierárquicas aponta para o computador como seu instrumento por excelência. Agora, espero pelos hackers que provem que estou certo, que
minha intuição é válida. Onde estão meus nabos?

CAPÍTULO 5 "Fomos Para Croatã"

NÃO QUEREMOS DEFINIR a TAZ ou elaborar dogmas sobre como ela deve ser criada. O nosso argumento é que ela foi criada, será criada e está sendo criada. Portanto, será mais proveitoso e mais interessante olharmos para algumas TAZ passadas e presentes, e especular sobre manifestações futuras. Evocando alguns protótipos podemos vir a ser capazes de avaliar o escopo potencial deste complexo, e talvez até mesmo vislumbrar um "arquétipo". Em vez de tentar qualquer tipo de enciclopedismo, adotaremos uma técnica franco-atiradora, um mosaico de vislumbres, começando de forma arbitrária com os séculos XVI/XVII e o estabelecimento do Novo Mundo. A abertura do "novo" mundo foi concebida desde o principio como uma operação ocultista. O mago John Dee, consultor espiritual da rainha Elizabeth I, parece ter inventado o conceito de "imperialismo mágico" e infectado toda uma geração com ele. Halkyut e Raleigh caíram sob seu feitiço e Raleigh usou suas conexões na "Escola da Noite" - uma ordem secreta de pensadores de vanguarda, aristocratas e iniciados - para
incentivar as causas da exploração, colonização e mapeamento. A Tempestade foi uma peça de propaganda para esta nova ideologia, e a colônia Roanoke7 seu primeiro experimento. A visão alquímica do Novo Mundo o associou com matériaprima ou hyle (o nada), o "estado da Natureza", inocência e possibilidade total ("Virgínia"), um caos ou essencialidade que o iniciado transmutaria em
"ouro", isto é, em perfeição espiritual assim como em abundância material. Mas essa visão alquímica é, em parte, também, gerada por uma real fascinação pelo incipiente, uma secreta simpatia por ele, um sentimento de ternura por sua forma sem forma, que tomou como símbolo para seu foco o "Índio": o "Homem" em seu estado natural, ainda não corrompido por nenhum "governo". Caliban, o Homem Selvagem, é instalado como um vírus dentro da própria máquina do Imperialismo Oculto. Florestas/animais/seres humanos são investidos desde o início com o poder mágico do marginal, do desprezado e do proscrito. Se, por um lado, Caliban é feio e a natureza é uma "imensa selvageria", por outro, Caliban é nobre e livre e a Natureza é um Éden. Essa divisão na consciência europeia antecede
a dicotomia romântica/clássica. Está enraizada na Alta Magia da Renascença. A descoberta da América (o Eldorado, a fonte da juventude) a cristalizou, e sua precipitação aconteceu na forma de esquemas reais de colonização.Na escola primária nos ensinam que a primeira tentativa de colonização em Roanoke fracassou, que os colonizadores desapareceram, deixando para trás apenas a mensagem críptica: "Fomos para Croatã". Mais tarde, relatos de "índios de olhos cinzentos" foram descartados como lenda. De acordo com os livros escolares, o que aconteceu foi que os índios massacraram os colonos indefesos. No entanto, "Croatã" não era nenhum Eldorado, era o nome de uma tribo local de índios amigáveis. Aparentemente, o povoado simplesmente mudou-se do litoral para a região
do Grande Pântano Sombrio e foi absorvido pela tribo. E os índios de olhos cinzentos eram reais - eles ainda estão lá, e ainda se conhecem por Croatãs. Então - a primeira colônia do Novo Mundo resolveu renunciar ao seu contrato com Próspero (Dee/Raleigh/o Império) e se uniu aos Homens Selvagens como Caliban. Eles deserdaram. Eles se tornaram "índios", viraram nativos, optaram pelo caos em detrimento dos atrozes sofrimentos de servir aos plutocratas e intelectuais de Londres.
À medida que os Estados Unidos surgiam onde antes havia sido a "Ilha da Tartaruga", Croatã permanecia embutida em seu inconsciente coletivo. Além da fronteira, o estado da Natureza (i.e., sem Estado) ainda prevalecia, e dentro da consciência dos colonizadores a opção pelo estado selvagem sempre esteve à espreita, a tentação de abandonar a Igreja, o trabalho no campo, a alfabetização e os impostos - todos os fardos da civilização - e, de um jeito ou de outro, "ir para Croatã". Ademais, como a revolução na Inglaterra foi traída, primeiro por Cromwell e depois pela Restauração, levas de protestantes radicais fugiram ou foram transportados para o Novo Mundo (que se tornou uma prisão, um lugar de exílio). Antinomianos8, familistas, quakers patifes, levellers9, diggers10 e ranters11
foram então apresentados à sombra oculta do estado selvagem, e apressaram-se em abraçá-lo.
Anne Hutchinson e seus amigos foram apenas os mais conhecidos (ou seja, pertenciam à classe alta) entre os antinomianos - tendo tido a má sorte de se envolverem nas questões políticas da colônia - mas
uma facção muito mais radical do movimento sem dúvida existiu. Os incidentes que Hawthorne narra em "The Maypole of Merry Mount" (O Mastro da Primavera do Monte Alegre) são totalmente  históricos: aparentemente os extremistas haviam decidido renunciar totalmente ao cristianismo e adotar o paganismo. Se tivessem conseguido êxito em se unir aos seus aliados indígenas, o resultado poderia ter sido uma religião sincrética com elementos antinomianos, celtas e algonquinos12, uma espécie
de Santería norte-americana do século XVII. As seitas puderam prosperar melhor sob as  administrações menos rígidas e mais corruptas do Caribe, onde os interesses dos rivais
europeus tinham deixado muitas ilhas desertas ou mesmo não-reclamadas. Especialmente as ilhas de Barbados e Jamaica parecem ter sido colonizadas por um grande número de extremistas, e acredito que influências igualitárias e ranterianas contribuíram para a "utopia" dos bucaneiros em Tortuga. Neste
ponto, pela primeira vez, graças a Esquemelin, podemos estudar com alguma profundidade uma bem-sucedida proto-TAZ do Mundo Novo. Fugindo dos horríveis "benefícios" do imperialismo, como a escravidão, o servilismo, o racismo e a intolerância, das torturas do recrutamento compulsório e da morte em vida nas plantações, os bucaneiros adotaram os costumes dos índios, casaram-se com Caraíbas, aceitaram negros e espanhóis como seus iguais, rejeitaram toda nacionalidade, elegeram seus
capitães democraticamente e se voltaram para o "estado da Natureza".
Declarando-se "em guerra contra o mundo todo", eles navegaram os mares saqueando sob contratos mútuos chamados "Artigos", que eram tão igualitários que cada membro recebia uma parte integral e o capitão geralmente apenas 1 1/4 ou l 1/2. O uso de açoites e outros tipos de punição eram proibidos - desentendimentos eram resolvidos por voto ou por duelo regulamentado. Simplesmente não é correto rotular os piratas de meros ladrões de alto-mar ou mesmo de proto-capitalistas, como alguns historiadores tem feito. De certo modo, eles foram "bandidos sociais", embora a base de suas
comunidades não se constituíssem como sociedades rurais tradicionais e eram, de fato, "utopias" criadas quase que ex nihilo in terra incógnita, enclaves da total liberdade ocupando espaços vazios do mapa. Depois da queda de Tortuga, o ideal dos bucaneiros permaneceu vivo durante toda a "Idade de Ouro" da pirataria (c. de 1660 a 1720), e resultou em colônias continentais em Belize, por exemplo, fundadas pelos próprios bucaneiros. Com a mudança de cenário para Madagascar - uma ilha ainda não reclamada por nenhum poder imperial e governada apenas por uma miscelânea de reis nativos (chefes), ávidos por aliados piratas -, a utopia pirata atingiu sua forma mais elevada. A narrativa de Defoe sobre capitão Mission e a fundação de Libertatia pode ser, como alguns historiadores proclamam, uma peça
literária criada para fazer propaganda para a teoria radical dos membros do Whig - mas está inserida em The General History of the Pyrates (A História Geral dos Piratas), que em grande parte ainda é aceita como verdadeira e acurada. Além disso, a história do capitão Mission não foi criticada quando
o livro apareceu, e muitos dos antigos marujos de Madagascar ainda estavam vivos. Eles pareciam ter acreditado nela, sem dúvida porque haviam experimentado enclaves piratas muito parecidos com a de Libertatia. Mais uma vez, escravos libertos, nativos e mesmo inimigos tradicionais como os portugueses eram convidados para se juntar a eles como iguais (Libertar navios negreiros era uma de suas prioridades.) A propriedade da terra era comunitária, os representantes eram eleitos por períodos curtos, os saques eram repartidos. As doutrinas de liberdade pregadas eram ainda mais
radicais do que aquelas do Common Sense13. Libertatia esperava durar e Mission morreu em sua defesa. Mas a maioria das utopias piratas foram criadas para serem temporárias. As verdadeiras "repúblicas" dos corsários eram seus navios, que navegavam sob o código dos Artigos. Os enclaves costeiros geralmente não tinham lei alguma. O último exemplo clássico, Nassau, nas Bahamas, uma estação balnearia com barracas e tendas devotadas ao vinho, mulheres (e provavelmente garotos também, a julgar por Sodomy and Piracy - Sodomia e Pirataria - de Birge), canções (os piratas eram grandes amantes da música e costumavam contratar bandas por cruzeiros inteiros) e todos os tipos de
excessos, desapareceu da noite para o dia quando a frota britânica apareceu na baía. Blackbeard e "Calico Jack" Rackham e sua tripulação de mulheres piratas moveram-se para costas mais selvagens e destinos mais cruéis, enquanto outros humildemente aceitaram o Perdão e se regeneraram. Mas a
tradição bucaneira perdurou, tanto em Madagascar, onde os filhos mestiços dos piratas começaram a construir seus próprios reinos, quanto no Caribe, onde escravos fugidos e gruos mestiços de negros, brancos e índios conseguiram prosperar nas montanhas e no campo como maroons. A comunidade maroon da Jamaica ainda retinha um certo grau de autonomia e muitos dos antigos hábitos persistiam quando Zora Neale Hurston visitou a região nos anos 20 (veja o livro Tell my Horse - Diga ao meu Cavalo). Os maroons de Suriname ainda praticam o "paganismo" africano. Através de todo o século XVIII, a América do Norte também produziu um certo número de "comunidades isoladas tri-raciais" (este termo que soa clínico foi inventado pelo movimento eugenista, que produziu os primeiros estudos científicos sobre essas comunidades. Infelizmente, a"ciência" serviu como uma justificativa para o ódio racial pelos "híbridos" e pelos pobres, e a "solução para o problema" geralmente era a esterilização
forçada). Esses núcleos invariavelmente eram formados por servos e escravos fugidos, "criminosos" (isto é, muito pobres), "prostitutas" (isto é, mulheres brancas que se casaram com não-brancos) e membros das várias tribos nativas. Em alguns casos, como o dos seminoles e cherokees, a estrutura tribal tradicional absorvia os recém-chegados; em outros, novas tribos eram formadas. Dessa forma, nós temos os maroons do Grande Pântano Sombrio, que persistiram através dos séculos XVIII e XIX, adotando escravos fugitivos, funcionando como parada no caminho secreto para a liberdade e servindo como um centro ideológico e religioso para as rebeliões de escravos. A religião era o vodu, uma mistura de elementos africanos, nativos e cristãos e, de acordo com o historiador H. Leaming-Bey,
os mais velhos da seita e os líderes dos maroons do Grande Pântano eram conhecidos como "os Sete Dedos do Alto Resplendor". Os ramapaughs do norte de Nova Jersey (incorretamente chamados de "Jackson Whites") apresentam outra genealogia romântica e arquetípica: escravos libertos dos poltrões holandeses, vários clãs dos índios de Delaware e algonquinos, as usuais "prostitutas", os "hessianos" (uma palavra de efeito para denominar os mercenários ingleses perdidos, legalistas desertores etc.) e bandos locais de bandidos sociais, como o de Claudius Smith. Alguns dos grupos, como os mouros de Delaware e os benismaelitas, que migraram de Kentucky para Ohio em meados do século XVIII, declaram ter origens afro-islâmicas. Os ismaelitas praticavam a poligamia, jamais ingeriam bebidas alcoólicas, viviam como menestréis, casavam-se com índios e adotavam seus costumes, e eram tão devotados ao nomadismo que construíam suas casas sobre rodas. Sua migração anual percorria um triângulo que incluía cidades fronteiriças com nomes como Meca e Medina. No século XIX, alguns desses grupos abraçaram ideais anarquistas e foram alvo de um programa de extermínio  particularmente perverso concebido pelos eugenistas. Algumas das primeiras leis eugênicas foram aprovadas em sua "honra". Como tribo, eles "desapareceram" nos anos 20, mas provavelmente engordaram as fileiras das primeiras seitas "afro-islâmicas", como o Templo da Ciência Islâmica.
Eu mesmo cresci ouvindo as lendas sobre os "kallikaks" da região de Pine Barrens em Nova Jersey (e, é claro, as histórias de Lovecraft, um racista enfurecido que era fascinado por comunidades isoladas). A lenda acabou por tornar-se parte da memória popular gerada pelas calúnias dos eugenistas, cuja sede ficava em Vineland, Nova Jersey, e que empreenderam as suas usuais "reformas" contra a "miscigenação" e a "debilidade mental" na região de Pine Barrens (incluindo a publicação de fotografias dos kallikaks, cruel e descaradamente retocadas para fazê-los parecer monstros degenerados).
As "comunidades isoladas" - ao menos aquelas que mantiveram sua identidade até o século XX - sistematicamente recusavam-se a ser absorvidas tanto pela cultura dominante quanto pela "sub-cultura" negra na qual os sociólogos modernos preferem incluílas. Nos anos 70, inspirados pela renascença dos índios americanos, alguns grupos - incluindo os mouros e os ramapaughs - inscreveram-se no Departamento dos Negócios Indígenas para serem reconhecidos como tribos indígenas. Eles receberam o apoio dos ativistas, mas o status oficial foi-lhes negado. Se tivessem ganho, afinal,
poderiam ter aberto um perigoso precedente para desertores de todos os tipos, desde consumidores de peiote (cacto alucinógeno) a hippies e nacionalistas negros, arianos (não significa nazista, significa branco), anarquistas e libertários - uma "reserva" para todos! O "projeto europeu" não pode reconhecer a existência do Homem Selvagem - o caos verde é ainda uma ameaça muito grande para o sonho imperial de ordem. Essencialmente, os mouros e os ramapaughs rejeitaram a explicação histórica ou "diacrônica" de suas origens em favor de uma autoidentidade "sincrônica" baseada no "mito" de uma adoção indígena. Ou, em outras palavras, eles se autonomearam " índios". Se todo mundo que
quisesse "ser um índio" pudesse consegui-lo através de um ato de autonomeação, imagine a retirada em massa para Croatã que aconteceria!
Aquela antiga sombra oculta ainda assombra a área remanescente de nossas florestas (que, aliás, tem crescido significativamente no nordeste desde os séculos XVIII e XIX, à medida que vastas extensões de terras produtivas são abandonadas. Thoreau, em seu leito de morte, sonhou com o retorno de
"...indígenas... florestas...": o retorno dos reprimidos). É claro que os mouros e os ramapaughs possuem razões concretas para pensar em si mesmos como índios - afinal, têm de fato ancestrais índios - mas, se analisarmos sua autonomeação tanto em termos "míticos" quanto em termos históricos, aprenderemos algo de relevância para nossa busca da TAZ. Em sociedades tribais existe o que alguns antropólogos chamam de mannenbunden: sociedades totêmicas voltadas a uma identidade com a "Natureza" através de um ato de transmutação de formas, de se transformarem no animal-totem (lobisomens, pajés-onça, homens-leopardo, feiticeiras-gato etc.). No contexto de uma sociedade colonial (como Taussig aponta em seu Shamanism, Colonialism and the Wild Man - Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem), o poder da transformação é percebido como algo inerente à cultura nativa como um todo. Dessa forma, a camada mais reprimida da sociedade adquire um poder
paradoxal através do mito de seu conhecimento oculto, que é temido e desejado pelo colonizador. É claro que os nativos realmente possuem um certo conhecimento oculto. Mas em resposta a essa percepção imperial de sua cultura como uma espécie de "espiritismo selvagem", os nativos começam a se enxergar neste papel de forma cada vez mais consciente. Durante o próprio processo de se tornarem marginalizados, a margem assume uma aura mágica. Antes do homem branco, eles eram simplesmente tribos formadas por pessoas - agora, eles são "guardiões da natureza", habitantes do "estado da Natureza". Finalmente, o próprio colonizador é seduzido por esse "mito". Sempre que um americano deseja largar tudo ou voltar para a natureza, invariavelmente ele "se torna um índio". Os
democratas radicais de Massachusetts (descendentes espirituais dos protestantes radicais), que organizaram o Tea Party, e que literalmente acreditavam que governos podiam ser abolidos (toda a região de Berkshire declarou-se um "estado da Natureza"!), disfarçaram-se de "moicanos". Assim, colonizadores que de súbito se encontravam marginalizados por sua pátria-mãe adotaram a representação de nativos marginalizados, procurando portanto (num certo sentido) compartilhar de seu poder oculto, de sua radiância mítica. Dos "homens das montanhas" aos escoteiros-mirins, o sonho de "se tornar um índio" flui sob uma miríade de expressões da história, cultura e consciência norte-americana. O imaginário sexual associado aos grupos "tri-raciais" também sustenta essa ideia. Os "nativos", é claro, são sempre imorais, mas os renegados raciais e os desertores devem ser completamente polimorfosperversos. Os bucaneiros eram sodomitas, os maroons e os homens das
montanhas eram miscigenistas, os kallikaks praticavam a fornicação e o incesto (o que originava mutações tais como a polidactilia), as crianças corriam nuas e se masturbavam abertamente etc. etc. O retorno a um "estado natural" paradoxalmente parece permitir a prática de todo tipo de ato "Antinatural"; ou pelo menos assim pareceria se fossemos acreditar nos puritanos e eugenistas. E já que grande parte das pessoas que vivem em sociedades racistas e moralmente repressoras secretamente desejam exatamente esses atos licenciosos, elas os projetam sobre os marginalizados, e assim convencem a si mesmos que permanecem civilizadas e puras. E realmente algumas comunidades marginalizadas rejeitaram a moralidade consensual - os piratas certamente o fizeram! - e sem dúvida realizaram alguns dos desejos reprimidos da civilização. (Você não faria o mesmo?) Tornar-se "selvagem" é sempre um ato erótico, um ato de desnudamento. Antes de deixar o assunto dos "tri-raciais isolados", eu gostaria de relembrar o entusiasmo de Nietzsche pela "mistura das raças".
Impressionado pela beleza e vigor de culturas híbridas, ele enxergou na miscigenação não só uma solução para o problema da raça, mas também o princípio para uma nova humanidade, livre dos preconceitos étnicos e nacionalistas - um precursor do "nômade psíquico", talvez. O sonho de
Nietzsche ainda parece tão remoto agora como o parecia para ele. O chauvinismo mantém seu domínio. Culturas mestiças permanecem submersas. Mas as zonas autônomas dos bucaneiros e dos maroons, ismaelitas e mouros, ramapaughs e kallikaks permanecem, ou suas histórias permanecem, como indicações do que Nietzsche poderia ter chamado de "Ânsia de Poder como Desaparecimento". Devemos voltar a este tema.